O outro, a casa e eu

As obras que compõem a série, ainda em produção, O outro, a casa e eu, consistem em pinturas em aquarela sobre papel, elaboradas a partir de 2024. No processo criativo dessas imagens, investigo as significações e os sentidos possíveis atribuídos ao signo da casa, a fim de tensioná-los com a figura corpórea. Neste percurso, alguns autores ampliam meu olhar sobre o tema. Gaston Bachelard, em seu livro A Poética do Espaço (1974), aborda a casa como um “instrumento de análise para a alma humana”, afirmando: “Nossa alma é uma morada. E quando nos lembramos das ‘casas’, dos ‘aposentos’, aprendemos a ‘morar’ em nós mesmos. Vemos logo que as imagens da casa seguem nos dois sentidos: estão em nós assim como nós estamos nelas”. Diante disso, o filósofo discute a noção de casa como um espaço verdadeiramente habitado, como “nosso canto no mundo”, um lugar que abriga sonhos, lembranças e devaneios.

Outra concepção de casa é apresentada por Paul B. Preciado, em sua crônica Casa Vazia, presente no livro Um Apartamento em Urano (2020). Inspirado pela experiência de adentrar uma casa vazia após uma mudança de residência, o autor elabora uma metáfora ao comparar seu corpo a uma casa vazia. Ele questiona por que temos pressa em “mobiliar as casas”, ou seja, por que temos pressa de nos encontrarmos em determinadas identidades, encaixando nossos corpos em padrões sociais e culturais, “mobiliando-os” conforme o esperado. Frente a essa discussão, uma casa vazia seria um espaço de possibilidades, no qual as relações que o corpo estabelece com o seu redor não são limitadas aos “móveis” pré-estabelecidos, como Preciado nos inspira a pensar ao contar que vive “numa casa vazia. Desprovida de móveis, uma casa é apenas uma porta, um teto, um chão. [...] Contudo, é uma experiência inaugural, estética: um corpo, um espaço”.

Provoco-me, portanto, a pensar sobre a casa enquanto algo que abriga possibilidades de ser, que acolhe memórias, protege, mas que também pode nos limitar nos contornos de seu espaço. Sustento-me na ideia de que essa “casa” e os sentidos que podemos atribuir a ela são constituídos sempre na relação com o outro e percebidos à medida que atravessam nossos corpos. Aproprio-me, assim, da imagem do meu corpo para apresentar a mim e ao outro, junto a elementos que fazem parte do imaginário de uma casa, tanto em seu interior quanto em seu exterior. A fechadura de uma porta, o teto, o cercado, a caixa de correio ou, ainda, o próprio vazio que pode preenchê-la são evocados como representações dessa “casa” que se constitui nas relações de alteridade que me proponho a investigar poeticamente.